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Simone de Oliveira

«Depois do adeus, fica uma vida para recordar»

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Disse o que quis, sem medo. Falou. Amou quem teve de amar. Em público, em segredo. Desafiou convenções. Cantou sem censuras. Criou a sua democracia, numa altura em que o país dormia na penumbra da ditadura. Perdeu a voz. Renasceu, sem os agudos que a fizeram cantora, mas com graves firmes e cristalinos. Enfrentou a imprevisibilidade de dois cancros da mama. Sobreviveu. Cantou sem parar, até sentir que seria tempo de se despedir dos palcos, que lhe serviram de casa por 65 anos. Hoje, orgulhosa das rugas que lhe traçam as várias vidas que viveu, Simone de Oliveira alimenta-se de uma «saudade lavada», com olhos postos no futuro e livre de arrependimentos. De olho verde expressivo, cabelo estilo old hollywood, gestos diligentes e palavras certas na ponta da língua, a artista fala-nos do desfolhar de 85 anos de existência. Haveremos de aplaudi-la, hoje, e sempre, de pé. 
Em jovem, cantarolava para a sua mãe Fado da Carta, de Fernanda Baptista, e Marco do Correio, de Alberto Ribeiro, mas nunca sonhou ser artista. O que planeava para a sua vida, na altura?
Não faço ideia, como qualquer rapariga daquela altura. Sei lá. Pensava tirar um curso relacionado com línguas, casar sem dramas, por aí... Nunca fui de imaginar muitas coisas. Era muito feliz com o meu pai, a minha mãe e a minha irmã.  

Acabou por frequentar o Centro de Preparação de Artistas da Emissora Nacional, o primeiro local em que se deparou, pela primeira vez, com um microfone. Em que altura se deu conta de que faria da música vida?
Entrei no Centro de Preparação de Artistas pouco tempo depois de ter acabado um casamento desastroso, em que apanhava muitas tareias. Na altura, fugi e fui morar para a casa dos meus pais. Por descargo de consciência, o meu pai acabou por me levar ao Centro de Preparação, não com o intuito de me fazer cantora, mas para que passasse três horas por dia ocupada. Confesso que a minha cabeça estava quase a dar a volta, mas, depois, comecei a frequentar aqueles programas da Emissora Nacional, às sextas-feiras, onde cantava a Maria do Espírito Santo e a Alice Amaro, e comecei a integrar-me nesse grupinho. No mesmo ano surge a RTP, que foi à procura de cantoras no Centro de Preparação de Artistas. O primeiro programa que eu faço é na televisão, com um vestido horrível. Daí para a frente, foi uma sequência de trabalhos. Comecei a cantar por ali e por aqui, mas só quando faço a Sol de Inverno, em 1965, e vou representar Portugal a Nápoles, é que percebo que da música faria vida.  

Subiu ao palco do Festival da Canção, em 1969, para cantar a Desfolhada Portuguesa. Como é que o público a recebeu? 
Deixe-me dizer que a primeira música do Festival da Canção a ser transmitida foi a minha, tendo ficado em 12.º lugar a atuação da Maria da Fé, uma grande fadista que cantou Vento do Norte. Quando ouvi a sua música, logo pensei «está ganho», mas, entretanto, a votação da Desfolhada subiu significativamente, conquistando o primeiro lugar. Confesso que não estava nada à espera de ganhar o festival. 
O público recebeu a Desfolhada Portuguesa de forma apoteótica. Passaram-se cerca de 54 anos e ainda estou para perceber o porquê. Na altura, vinha de comboio de Madrid e o comboio começou a parar ao chegar a Lisboa. Questionava-me sobre o que estaria a acontecer. Percebi, pouco tempo depois, que estavam 23 mil pessoas paradas na linha do comboio para me ver. Lembro-me de ver o meu pai lá fora e de ele me abraçar. Chorei muito. Ainda tive de ir ao segundo andar da estação, com um megafone, de janela aberta e banco em cima da mesa, para cantar a Desfolhada. O espantoso é que as pessoas sabiam de cor a canção. Como é que em dois dias a memorizaram? Também me recordo de um senhor de idade, na altura em que eu estava a entrar para o comboio, tirar o boné e dizer: «Ó minha senhora, o que se fez ao nosso país!». A realidade é que se tratava de um problema de país, um problema de raiva, um problema de «quem faz um filho, fá-lo por gosto». Vem, fundamentalmente, dessa frase, que naquele tempo ninguém teria dito.  

Em entrevistas, revela que o seu pai nunca lhe elogiou o potencial da voz e que se contam pelos dedos as vezes que assistiu a um dos seus espetáculos. Hoje, percebe o motivo?
Boa pergunta. Não faço a menor ideia. Tenho noção de que ver-me tornar artista foi a última coisa que lhe passou pela cabeça. «Esta filha é completamente maluca», ouvia-o dizer à minha mãe. Eu, de facto, tinha atitudes que ninguém se atrevia a ter, naquela altura. As pessoas casavam, apanhavam e permaneciam em casa, caladas. Eu casei, apanhei e fugi. Se ser casada significava aquilo, eu não queria. Tive, felizmente, um pai e uma mãe que me aceitaram, aliás, eu cheguei a casa deles e disse-lhes: «Eu posso não ficar aqui, convosco, mas nem que eu durma na rua, eu para lá não volto». E eles perceberam que eu não voltava, e não voltei mesmo.  

Enquanto o país dormia na penumbra da censura, cantou a pulmões abertos: Quem faz um filho / fá-lo por gosto. Alguma vez teve receio das consequências que poderiam advir de um espírito tão inconformado e interventivo?
Eu sou uma mulher que não tem medo. Nunca me passou pela cabeça que me fariam mal por cantar a verdade. 
Um dia, lembro-me de cantar a Sol de Inverno e, de seguida, ter uma conferência de imprensa. Acontece que, durante a sessão, um jornalista italiano pega na letra bandeira vencida / rasgada no chão e me pergunta se aquilo representava a luta perdida contra Salazar. Naquele momento, tinha a delegação portuguesa a olhar para mim, até que eu respondo: «Olhe, deve estar completamente enganado. Nós estamos numa conferência de música e, portanto, eu penso que o senhor deveria ir para uma conferência política, que talvez seja na mesma rua, três portas abaixo». Até hoje não sei como tive lata para dizer aquilo.

«A vida tem-me dado tudo»
Perdeu a voz, numa altura complicada da sua vida. Acabou por ser convidada a juntar-se a um jornal, e o teatro impôs-se no seu caminho. «Deus escreve certo por linhas tortas»?
Penso que sim. Na altura, o meu nome estava sempre como cabeça de cartaz e, portanto, eu tinha de cantar. Tanto cantei que, quando fui para dar um concerto num hotel na Póvoa de Varzim, fiquei muda. Saí imediatamente do estabelecimento, peguei no carro e regressei para casa com os meus pais. Recordo-me de que o meu pai se fechou no escritório comigo, pôs os meus discos a tocar e disse-me para não chorar, porque de saudade também se vive. Ter perdido aquela voz foi, de facto, a melhor coisa que me poderia ter acontecido na vida, até porque não teria durado muito tempo. A «nova» voz aparece sucedida de uma rouquidão, de uma faringite por excesso de trabalho e voz mal colocada. 

Já deu muito à cultura portuguesa. O que é que a música e o teatro lhe dão a si?
Deram-me tudo aquilo que eu sou, inclusive, as condecorações, entregues por três presidentes da república. Bem, alguma coisa eu terei feito para merecê-las, mas algo que nunca fiz foi tirar o lugar a alguém, nem que passasse fome, e teria sido tão fácil ter tudo...

Aos 84 anos, Simone despede-se dos palcos, após mais de meio século de carreira. Depois do adeus, o que fica?
Depois do adeus, fica uma vida para recordar. Ficam as imagens que eu não tenho. É engraçado como não tenho fotografias das minhas atuações. Nem uma. E eu cantei em tudo o que era sítio, até em cima de um poço, por cima de umas tábuas. Na altura só pensava: «Se as tábuas partem, lá vou eu...» (risos).  

Foi congratulada com muitos prémios. Qual é que faltou receber?
Nenhum. A vida tem-me dado tudo. Tenho todas as razões para ser uma mulher feliz: dois filhos espantosos, um marido extraordinário, quatro netos notáveis, que são já arquitetos e engenheiros... Veja-se que nenhum nasceu para cantar (risos). Também já sou bisavó de um menino chamado Guy, com o mesmo nome que o meu pai, em sua memória. 

Em pleno século XXI, decorrem duas guerras. De que forma a música serve de símbolo de esperança para estes países em conflito? Até porque, durante a Guerra Colonial, a Simone foi cantar para as tropas portugueses em combate... 
Penso que, neste momento, é um problema de humanidade, um problema de homens, um problema de deus. Nada poderá ter que ver com música. As pessoas matam em nome de um Deus. Não sei quem ele é, mas gostava de me sentar e conversar com ele. 

Se estivesse frente a frente com Deus, perguntava-lhe o porquê da guerra?
Perguntava. Se Deus existiu, ou se a imagem de verdade, lucidez, igualdade e de praticar o bem tem o seu nome inerente, eu pergunto porque é que se mata em nome dele, do dinheiro, da luxúria, de munições... Creio que o problema da Ucrânia é de independência. Se Espanha quisesse invadir Portugal, eu ia para a Avenida da Liberdade, de bandeira ao peito, cantar a Desfolhada. Eu tenho uma pátria, que se chama Portugal. Tenho uma língua, que é o português. Não gostaria de ser outra coisa, que não portuguesa.

«A minha mente vai muito além do meu corpo»
Como vê a cultura portuguesa nos dias que correm?
É, hoje, uma cultura diferente e, como tal, temos de aceitar as suas mudanças. Há uma liberdade que certamente não existia no meu tempo, mas, por vezes, têm de existir limites. A minha liberdade não me dá o direito de ser inconveniente com o outro, mas é isso que tem vindo a acontecer. 

De que forma encara o estado do papel da mulher em Portugal? 
A mulher ainda não tem aquilo que deveria ter, mas já tem muita força. Houve tempos em que não tinha nenhuma, e eu que o diga. Os meus filhos foram filhos de mãe incógnita durante dez anos. Na altura, eu estava casada pela igreja, os meus filhos não eram daquele casamento e não existia divórcio. Se eu revelasse que era mãe deles, eles ficariam com o nome de um homem que não era o pai biológico. Até que houve um dia em que um ministro português anunciou a lei que obrigava a que os filhos tivessem o nome do pai e da mãe. Lembro-me de ter ido à conservatória e de ter no bolso as cédulas dos meus filhos, sem o nome dos pais e avós. Em vez de me darem umas novas, queriam pôr um averbamento, e eu não queria. Até que me pedem as cédulas antigas e eu respondo que as tinha perdido, mentira que, na altura, resultava em multa e prisão. Eu tenho a certeza de que a pessoa que me atendeu sabia que eu as tinha, mas olhou para mim e deu-me umas novas. Quando chego a casa, conto ao meu pai e ele, radiante, abre uma garrafa de champagne e deita por cima dos meus miúdos.  

E o que acha destas novas gerações de músicos? Farão jus ao legado deixado pelos gigantes da música portuguesa?
Serão outras memórias. O tempo é outro, a vida é outra, o século é outro... Posso dizer que adoro a Mariza e os artistas que são mentores no programa televisivo The Voice Portugal. Gosto do António Zambujo, da Carminho e do Camané, mas há outros que esgotam casas sem eu perceber o porquê.  

Partilhava uma ligação especial com Amália?
Eu tenho o maior respeito pela Amália. Devo-lhe imensas gentilezas. Cantei em Paris com fatos feitos em sua casa, porque não tinha dinheiro para os mandar fazer. Lembro-me de estarmos as duas em Paris, no quarto dela, a falar por horas. Jantei muitas vezes em sua casa e, hoje, sou incapaz de a visitar. Incapaz. Jamais esquecerei a imagem dela no cimo da escada, com o cigarro e os seus saltos altos. Digo-vos, a única diva que existiu até hoje chama-se Amália Rodrigues.  

Há segundas Amálias? 
Não. 

E segundas Simones?
Se não cantarem mal, fico muito contente que apareçam!

«Eu não quero ser outra coisa, que não portuguesa»
É uma mulher das tecnologias ou estas não lhe dizem nada? 
Tenho FacebookNetflix e vejo televisão, principalmente, o canal Fox Crime. Adoro o filme Joker, embora sofra até ao fim. Mas, se me derem um tablet para as mãos, não sei funcionar com aquilo.  

Tem orgulho nos seus traços vincados pelo tempo?
Tenho. Caso contrário, onde estaria o que eu chorei, o que eu ri, as palmas que eu não tive? É a minha vida que está traçada na minha cara.  

Sente que a sua mente se enquadra no seu corpo?
A minha mente vai muito além do meu corpo. Tenho dificuldade em andar, o que, por vezes, me inferioriza um pouco. Já a cabeça está num lugar extraordinário, mas «o corpo é que paga»! 

Chorou muitas vezes escondida do mundo?
Muitas vezes. Fui fazer um espetáculo de comédia no dia em que a minha mãe morreu, portanto, penso que isso responde à pergunta. 

Com quem foi a conversa mais difícil que teve?
Com o meu pai. Acontece que estava casada e fugi, mas acabei por engravidar desse senhor. Na altura, o meu pai sentou-se comigo e perguntou-me se queria ter a criança. Eu respondi-lhe que não, e não tive. 

Ainda se surpreende com a vida?
A vida é uma surpresa diária. Algo que ainda me espanta é o Espaço, onde vemos a Terra pendurada no nada. Como é que estão ali os mares, os países, as serras, as pessoas, os autocarros... Quem fez, quem pôs? 

Teme o seu esquecimento?
Não, porque é algo inevitável. Alguém se lembra do D. Afonso Henriques, que carregava aquela espada pesadíssima? Não! (risos).

Acredita que há mais vida para além da vida?
Acredito. Nós somos energia e essa energia tem de estar em algum lado. Digo eu, esperançada.
Música da Simone que os netos mais ouvem: Sol de Inverno

Melhor e pior traço de personalidade: o pior traço é acreditar nas pessoas e o melhor é tentar ajudar os que me rodeiam. 

Música que melhor representa a sua vida: Rien de Rien, da Edith Piaf. 

Algo que nunca revelou ao público: as pessoas que eu amei, sem o público saber. 

O que mudaria na sua vida: nada. 

Partido português no qual nunca votaria: Chega.
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