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· Cultura · · T. Joana Rebelo

Filipe La Féria

«Não olho para o passado porque tenho saudades do futuro»

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F. Direitos Reservados
Chegando à Rua das Portas de Santo Antão, o ambiente é envolvido por músicas que nos são familiares. Tudo fica mais claro quando, na rua, ecoam as palavras da célebre Amália: «Cheira bem, cheira a…» Exato, cheira ao Politeama. Imponente ele se apresenta, com traços clássicos, de tamanha beleza. Uma lufada de ar fresco no meio da azáfama lisboeta. Subindo as escadas, deparamo-nos com um espaço que suscita reflexões e, sem dar conta, os sentidos estão em alerta. Espelhos, estátuas e candeeiros imbuídos de requinte. Sorrisos que nos recebem, panfletos que nos atraem e cartazes que nos lembram da fugacidade do tempo. Memórias banhadas em ouro, que lembram Eunice Muñoz, Maria Callas e outros tantos que marcaram o rumo da história do teatro português. Aquele espaço, outrora trilhado por Mário Soares e Natália Correia, emana grandeza. Mas estes pensamentos dissipam-se, quando avistamos Filipe La Féria. Aqui está ele, de sorriso rasgado e voz rouca, abrindo-nos a porta do gabinete e a do seu coração. O que sucede é uma conversa rica em conteúdo, que certamente se prolongaria por horas, se a agenda de La Féria o permitisse. Já que chegou até aqui, permita-se conhecer o que ainda não foi dito por parte deste brilhante encenador português.   
F. Nuno Almendra
Aos 4 anos, foi viver para Lisboa. O que é que ficou da criança que cresceu no Alentejo?
Ficou tudo. Penso que ainda sou essa criança. O Alentejo, mesmo que fujamos dele, nunca foge de nós. Sou muito ligado à terra onde nasci. Aliás, tenho lá sepultados os meus entes queridos e, inclusive, um monte. Nessa propriedade residem muitas memórias. Não é ao acaso que lá tenho a estufa da Música do Coração, os cogumelos da Alice no País das Maravilhas... Muitos dos meus cenários estão espalhados ao ar livre. Ainda assim, preciso tanto do Alentejo, como de Lisboa, na minha vida.  

Quando é que percebeu que dedicaria grande parte da sua vida à arte do espetáculo?
Sempre. Nasci com a sensação de que a realidade não existe. Sempre vivi entre a fantasia e a realidade. Desde que me lembro que acho que o próprio ser humano tem uma parte muito teatral. Recordo-me de ouvir as conversas das mulheres na cozinha, as histórias dos antepassados, a liturgia da igreja... Já nessa altura era o teatro a magicar em mim. 

Sempre se achou diferente dos outros?
Sou um pouco extraterrestre, confesso. Eu vivo de forma muito intensa. Gosto de provocar as pessoas, de proporcionar... Não há nada pior do que vivermos num marasmo, de sermos indiferentes, de vivermos uma ‘vidinha’. O português vive muito a sua ‘vidinha’. Há que fazer um enorme esforço para não se ser medíocre, para se ser diferente, para se ser extraterrestre.

Muitos não sabem, mas estreou-se na RTP como ator, com a peça A Páscoa. Quer falar-nos deste início de percurso e da transição para o papel de encenador?
Fiz A Páscoa, sim. Um texto extraordinário. Mas já antes tinha pisado o palco no Teatro Nacional com a Amélia Rey Colaço, num espetáculo em que se comemorava Gil Vicente. Entrava a Palmira Bastos e todo o crème de la crème do teatro português. Mas eu fazia uma figuração, entrava mudo e saía calado (risos). O papel de ator costumava andar em paralelo com o de encenador, mas estive muito tempo só como ator, com uma carreira premiada. Pertenci às melhores companhias de teatro: Teatro Nacional, Teatro da Cornucópia, Teatro Experimental de Cascais... Tive essa sorte, a de fazer bons papéis, junto de pessoas extraordinárias. Na verdade, o que mais me privilegia na vida é ter conhecido, através do teatro, pessoas absolutamente incríveis, não só atores, mas personalidades como Almada Negreiros, Natália Correia, Lagoa Henriques, enfim, pessoas que me marcaram para toda a vida.

«Há que fazer um enorme esforço para não ser medíocre»
F. Nuno Almendra
Considera que o teatro é o palco da liberdade?
A liberdade é uma palavra que quase não tem significado, de tão usada. A verdade é que sempre fui livre, mas paguei a minha liberdade. Eu trabalho sem subsídios, não tenho apoios do Estado, tenho de lutar sozinho... Isto tudo se paga, conquistando-se com muito esforço. Eu nasci com alma de guerreiro, um guerreiro que não tem repouso (risos). Creio que, na vida, o que é necessário é haver amor e, de facto, eu sinto-o quando se trata do teatro e do mistério que lhe é inerente. 

É a insatisfação que faz um bom artista?
Não. Para se ser um bom artista, tem de se ter talento. Ou se nasce para isto ou não, por muitas boas escolas que se tenha. Eu, por exemplo, tive bons mestres, em Portugal e no estrangeiro, mas a forma como expresso o que me vai na alma é fundamental. Isto não serve apenas para um ator. Eu, como encenador, escrevo as peças, faço os cenários e os figurinos, portanto, acabo por dar tudo de mim ao teatro. 

Quem é a sua maior musa?
Já tive muitas. São todas e nenhuma, em simultâneo. Algo que considero irrepetível é o êxito que teve a peça Amália. Ela pediu-me para eu fazer o musical. Acabou por ser visto por milhões, na Europa inclusive. Lembro-me de que a estreia foi inarrável, com o público aos gritos, concentrado num só espaço.   

Previa que a peça tivesse tanto êxito?
Não. Na véspera achava que a minha vida ia acabar (risos). Em Portugal, tudo o que é diferente é criticado. O público português é sempre desconfiado, gosta de falar mal. Por exemplo, os anglo-saxónicos têm uma admiração enorme pelos seus artistas, mesmo quando envelhecem. Os portugueses já não são assim. Um dia somos tomados por génios, noutro já somos uma porcaria.
F. Nuno Almendra
O sucesso em Portugal é sempre imprevisível?
Nós não nos podemos agarrar ao sucesso. Eu vivo para me expressar, para que, dentro da minha pouca importância, possa proporcionar felicidade e mudar a mentalidade do espectador. Se deixar uma interrogação que seja, já é extraordinário. Não vivo para o sucesso.  

Ao cair do pano, são os aplausos que o deixam com a sensação de «missão cumprida»?
A missão nunca está cumprida. Temos uma vida a fazer e, por isso, é necessário vivê-la, encarando-a com coragem e sempre conscientes da sua finitude. Como o pano fecha, também um dia tudo fechará. O milagre que é a vida também finda. Por vezes, com aplausos; outras vezes, sem eles.  

Com as novas plataformas de streaming em força, como é que se tira o espectador do sofá, fazendo-o vir ao teatro para assistir a uma peça?
O teatro é uma experiência que não se compara às redes sociais. É algo único, que se faz olhos nos olhos com o público. Não há truques, não se repete, cada dia é diferente. Não é como o cinema, que se possa trocar e editar. Por isso é que é um mundo que existe desde os Gregos e que tem vindo a acompanhar a História da Humanidade. O mistério do mundo era comunicado às constelações através da representação. Portanto, o teatro sempre foi um ato de amor. É dada a alma para comunicar com o espectador.
O Filipe vivenciou o tempo da ditadura salazarista. Consegue identificar as grandes diferenças entre a maneira de se fazer teatro antes e depois do 25 de Abril?
Antes fazia-se bom teatro, com bons atores. Havia uma grande companhia de teatro nacional e uma companhia de ópera. Hoje não. Isto acontece devido à falta de interesse por parte dos partidos políticos. A cultura está diretamente ligada à educação, pelo que esta tem vindo a desvanecer-se. E, portanto, temos de seguir o nível cultural do público, para que este entenda as nossas peças. Mas, voltando à questão, antes do 25 de Abril, havia censura. Hoje, há uma censura económica, mais sofisticada. Noto que há palavras que foram tão sacralizadas que perderam o sentido, é o caso dos termos «liberdade» e «democracia». 

O Politeama é hoje um palco, sobretudo, de memórias. Quer contar-nos a recordação que mais acarinha?
Todas. Ou melhor, a próxima. Não olho para o passado porque tenho saudades do futuro.  

Fale-nos do presente projeto em que se encontra a trabalhar, Cinderela. A personagem será tal e qual como a conhecemos ou terá um toque La Féria pelo meio?
A personagem é completamente original. É uma peça que fará 300 representações, em que os atores chegam a reproduzir até seis repetições por dia. As escolas chegam do norte e sul do país para ver a Cinderela, deixando as salas lotadas. 
Paralelamente, há a Revista. Um verdadeiro êxito, porque a história é abordada através do humor. A Revista começa na Monarquia e vai acompanhando sempre a linha temporal da história portuguesa. E, de facto, a grande força do teatro é contarmos a nossa história. Penso que em Portugal pecamos por fazer muitas traduções, atores a fazerem-se passar por americanos... Como tudo na vida, o teatro tem de ser localizado para ser universal. Temos de recorrer primeiro à nossa identidade e, aí sim, podemos torná-lo universal.

«Em Portugal, a maior parte dos atores faz teatro para o umbigo»

O que acrescentou o Filipe ao teatro português?
Creio que nunca houve tantas pessoas a procurarem o teatro. Com a peça Amália, por exemplo, estimam-se seis milhões e meio de expectadores, além dos outros 200 espetáculos já feitos. Eu transmito emoção, verdade e espectralidade. E, em tudo o que faça, tenho sempre presente um excerto do poema de Fernando Pessoa: «Para ser grande, sê inteiro: nada / teu exagera ou exclui». Portanto, para comunicarmos com os outros, temos de nos dar por inteiro.  

Como é que enfrentou os períodos de confinamento longe do palco?
Foi muito difícil. Tive um espetáculo que aguentou, o Espero por ti no Politeama, que por muitas vezes foi realizado por dois bailarinos, em vez de dez. Tive de me adaptar. No século XXI, estamos a dar conta de como ainda nos encontramos na Idade Média. Entendemos que uma epidemia pode ser tão brutal que nos consegue reduzir a nada. A tal insignificância que temos perante o universo. O Homem é o animal mais terrível da natureza, já por isso venceu os outros animais. É o que sabe matar à distância. O leão, por exemplo, dá o corpo para matar. Nós não, somos animais hipócritas e, ao mesmo tempo, os mais inteligentes. 

Entre sonhar e concretizar, qual é o caminho?
Trabalho. Sangue, suor e lágrimas. A minha mestre dizia-me que um artista precisa de 95% de trabalho e 5% de talento. Eu concordo. 

Quem seria o Filipe La Féria sem o teatro?
Não existia. Nem eu era capaz de viver sem. Podia, talvez, ter sido um escritor, gosto de escrever desde pequeno. Até colaborei no Diário de Lisboa Juvenil e cheguei a ganhar prémios. 

Como gostava, um dia, de ser recordado?
Na vida, tudo é esquecimento. Morreu a Eunice Muñoz e hoje quase ninguém fala dela, por exemplo. Falo eu, que lhe faço sempre uma homenagem na Revista. Na semana em que morrem são falados, mas depois... Portanto, não penso na ideia do esquecimento. A vida é insignificante e é preciso ter a humildade de nos olharmos como Camões uma vez disse: como «esse bicho da terra tão pequeno».  
Joana Rebelo
T. Joana Rebelo
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