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João Paulo Borges Coelho

«...Não são as pessoas que cabem dentro dos países»

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Nasceu em Portugal, mas optou pela nacionalidade moçambicana. João Paulo Borges Coelho é historiador e investigador das guerras colonial e civil em Moçambique. Escreve sobre o que sente pelos caminhos de terra vermelha, onde junta personagens verdadeiras e ficcionadas. Na sua literatura, somos conduzidos pelos enredos que nos agarram até à última página. Venceu o Prémio Leya com uma história de heróis esquecidos, numa época em que o Norte sangrava e o Sul rejubilava. No seu último romance, Ponta Gea, revisita a infância passada na Beira, uma cidade que, aos poucos, a água vai levando.

Começou a escrever para si, pensava organizar esses seus pensamentos?
Todos escrevemos para nós e houve um período, depois da independência, em que anotava muitos pensamentos sobre o que via, mas não sabia posicioná-los, de forma a escrever algo. E foi assim, por acaso, numa viagem de trabalho, ao Zumbo, na fronteira com o Zimbabué e com a Zâmbia, um sítio muito remoto... Fui anotando histórias que me iam contando e a que eu ia assistindo; depois, juntei tudo e fiz o primeiro livro, «As Duas Sombras do Rio», que é sobre a guerra e o pós-guerra naquela zona.

A guerra, ou os efeitos que provoca, é um tema recorrente em si.
Por razões profissionais (sou historiador), trabalho com a História Contemporânea e fui-me envolvendo em pesquisas, fiz um doutoramento sobre o impacto das duas guerras, colonial e civil, numa determinada zona e na disposição dos camponeses nesse território, e, a partir daí, fui trabalhando com os conflitos. Estive envolvido muitos anos com uma rede de universidades da África Austral, acompanhava a transição para a democracia no sector de Defesa e Segurança e fui-me relacionando com os conflitos e, isso, de alguma maneira, acaba por se reflectir na literatura. Os conflitos esmagaram, durante estes anos todos, a sociedade; estão muito presentes, é impossível evitá-los.

Vence o Prémio Leya com O Olho de Hertzog uma história sobre a Primeira Guerra Mundial.
Havia dois motivos para o escrever, por um lado, a figura do general alemão, o Paul Emil von Lettow-Vorbeck, e a experiência que foi a sua incursão dele pelo Norte de Moçambique e, por outro lado, a grande transformação que se vivia na antiga Lourenço Marques. A capital era a porta de entrada do grande desenvolvimento do impulso que estava a ter a economia sul-africana com o ouro, e isto mostrava quão diferente era a situação dentro do mesmo país. Mal se ouvia falar da guerra no Sul e aquilo fez-me muita impressão. Uma guerra tão intensa no Norte, o Lettow chegou a Quelimane, ao centro do país, e mais abaixo vivia-se um clima até de um certo cosmopolitismo. E, cheio de enredos e com histórias sul-africanas à mistura, fui entrando, como se estivesse num labirinto, e fui andando até onde a história me levou.

As suas personagens são intensas, sentimo-nos a viver o seu dia-a-dia.
Não tenho uma fórmula para as personagens, nem tenho uma ideia de um enredo, quando começo um livro. Às vezes, um simples ambiente serve para começar, depois vai crescendo e as personagens são pessoas que nós, a princípio, conhecemos mal, mas vamos lidando com elas todos os dias e conseguimos conhecê-las um pouco melhor. Passámos o dia a pensar nelas, e no que são capazes de fazer. Elas têm força própria, a história dá-lhes essa força e é assim que elas vão surgindo. Muitas vezes, são personagens reais, arranco bocados de uns e outros; outras vezes as parecenças aparecem mais tarde, quando já estão amadurecidas. Parto quase sempre de personagens reais, gosto dessa ambiguidade.

«Os conflitos esmagaram, durante estes anos todos, a sociedade; estão muito presentes, é impossível evitá-los»

Há um momento em que a história muda, um quebrar de corrente, como faz?
Não tenho o domínio do desenrolar da história, a história morre sozinha, não há um formato em que pense que tenho de fazer duzentas páginas e agora tenho de acabar, ela acaba quando perder fôlego, acaba naturalmente. Pelo menos tem sido assim até agora.

Quando chega ao fim, o que faz com todas as pessoas com quem viveu durante esse tempo?
Despeço-me delas, bebo uma garrafa de vinho e arrumo o assunto e nem tenho apelo para reler os livros. Já aconteceu ler bocados, mas, deixa-me sempre muito inquieto. O texto, para mim, não é algo fixado, quando volto a ele, se pudesse, continuava a mexer.

Foi para homenagear a Beira que escreveu «Ponta Gea»?
Quando se escreve um livro, não há uma razão especifica, há, talvez, uma nebulosa de razões, algumas das quais, nós dominamos e outras não, e que se traduz na vontade. Quis um livro até mais sobre a minha infância, que está localizada naquele bairro, o Ponta Gea.

A sua infância foi algo que quis registar, por alguma razão?
Quis, de alguma forma, discutir para mim próprio a descoberta da natureza e a descoberta das pessoas. É um livro muito relacionado com a natureza e com a água e, num certo sentido, foi premonitório, porque, há pouco tempo, aconteceu a tragédia. A Beira tem muitas partes abaixo de água, abaixo do nível do mar, e tinha uma cintura de mangais que desapareceu ao longo das últimas décadas.

Conheceu bem esses mangais?
Sim, morava mesmo ao lado e caminhava mais de meia hora por dentro do mangal para chegar à praia. Hoje, a água está mesmo ao lado dessa casa. O que prova que desapareceram faixas que, de alguma forma, seguravam a costa e isso, para mim, foi chocante. E tem que ver com a transgressão marítima devido às alterações climáticas, com a subida das marés e a erosão da costa. Isto era uma morte anunciada.

«Eu não tenho uma formula para as personagens, nem tenho uma ideia de um enredo quando começo um livro»

Tem uma origem plural ou é só moçambicano?
Muitas pessoas perguntam-me pela origem, é curioso porque não vejo assim. Acho que os países cabem dentro das pessoas, não são as pessoas que cabem dentro dos países. Isto é uma questão que tenho resolvida há muito tempo. A minha trisavó, da parte da minha mãe, é da ilha do Ibo, então, tenho raízes em Moçambique; e tenho raízes em Murça, em Trás-os-Montes, por parte do meu pai. E nasci no Porto, um pouco por acidente, e, com meses, voltei para Moçambique, fui para Tete, mas a Beira é a minha cidade.

Ficar em Moçambique foi uma opção familiar?
Não foi opção, foi antes uma condição, é o meu lugar, não tive nenhuma razão para ir embora. Quando houve o 25 de Abril, em 1974, estava a estudar em Lisboa, no Instituto Superior de Psicologia Aplicada e estive também na Faculdade de Letras a fazer História mas, em nenhum dos cursos, me consegui enquadrar. Em 1975, fiz uma viagem de regresso, com o avião vazio – eu era o único a voltar para Moçambique. Os aviões iam cheios para Portugal e eu estava a voltar.  


Cristina Freire
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